“Bolsonaro está para o caos como o peixe está para a água. Sem caos, ele morre asfixiado.”
Fernando de Barros e Silva, Revista Piauí, #173
Nesta pátria fraturada e adoecida, o bolsonarismo prospera feito um câncer em metástase. Faltam palavras para descrever a infelicidade e o infortúnio de um povo como o nosso que tem, em época de peste, a desgraça suplementar de ter um (des)governo pestífero no comando do poder executivo federal.
Tornando-se garoto propaganda de cloroquina, pregando que quem tomasse vacina poderia virar jacaré, imitando pessoas asfixiadas ou sabotando em discursos públicos e lives todas as medidas sanitárias recomendadas pela Ciência, Jair Bolsonaro foi o comandante-em-chefe de um genocídio. As armas de destruição em massas que usou – não sem ajuda dos algoritmos que Cathy O’Neil critica – foram a desinformação deliberada, o negacionismo obscurantista e a postura sectária-fundamentalista.
De acordo com o epidemiologista Pedro Hallal, em estudo apresentado à CPI, estima-se que 400.000 pessoas poderiam estar vivas se não tivéssemos tido no comando da nau da nação um capitão que agiu como comparsa da peste. Como aliado da foice.
Nestes anos em que estivemos metidos no surto global do coronavírus, no Brasil sofremos as calamidades complementares da pandemia e do pandemônio. Este último, resultado daquilo que Marcos Nobre bem apelidou, em artigo para a revista Piauí, de “o caos como método”, marca o bolsonarismo como ideologia tóxica que chafurdou o país num dos piores conglomerados-de-crises de nossa história.
A crise multiforme é uma crise alimentar, é uma crise ambiental, uma crise da biodioversidade, uma crise climática, uma crise democrática, uma crise… econômica, fiscal, governamental, hídrica, laboral – e vou me deter nas 12 primeiras letras do alfabeto para não cansá-los enumerando outra dúzia de crises em que estamos mergulhados.
Evidentemente, é sobretudo de uma mega-crise de saúde coletiva de que estamos falando aqui. E do fato de que foi gerida com tal grau de criminosa irresponsabilidade e de genocidas consequências que beira o inacreditável que tal gestão possa chegar ao fim de seu mandato.
Nesta hecatombe coletiva imensurável, há como mensurar pelo menos as perdas de vidas no Brasil em contraste com outras nações. Eis os números que podemos perfilar a partir dos dados da universidade Johns Hopkins: em Outubro de 2022, mês das eleições em que Jair Bolsonaro busca re-eleição, a covid19 já ceifou mais de 6 milhões e 500 mil vidas humanas: nosso país, que tem 3% da população humana da Terra, contabiliza 11% dos óbitos globais por covid, ficando atrás apenas dos EUA em número absoluto de vidas perdidas. Temos mais mortes que a China e a Índia, países que possuem densidade demográfica infinitamente superior – ambos com mais de 1 bilhão de habitantes. O número oficial de vidas brasileiras perdidas supera 687.000 (seiscentos e oicenta e sete mil pessoas) e o número de casos ultrapassou 34.000.000 (trinta e quatro milhões).
Sua punição como criminoso-contra-a-humanidade precisa transcender a conjuntura brasileira e é um tema muito maior do que nossas idas às urnas brasileiras neste caótico e conflagrado Outubro de 2022. Porém também é fato que esta responsabilização penal do regime genocida precisa começar pelo juízo cidadão que se expressa através do sufrágio universal: o começo que pode levar, por fim, a uma condenação no Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia ou a outras instâncias, tem que ser fruto dos próprios cidadãos brasileiros.
Uma maioria do eleitorado eleger Luiz Inácio Lula da Silva significa também a abertura de uma avenida de possibilidade onde poderemos trafegar em prol da cura e da regeneração, começando a nos vacinar contra a virótica presença de Jair Bolsonaro. Fora da presidenência, perdendo os “escudos” que seu cargo atual lhe fornece em prol de sua blindagem e impunidade, sem a parceria com Aras e com Lira para salvá-lo de pagar por seus delitos, poderemos trilhar esta estrada de uma reivindição, de uma mobilização, em prol de sua desejável responsabilização criminal. Aquele que foi criminosamente irresponsável precisa ser penalizado pelos malefícios que cometeu sob o risco de, não o sendo, servir como sedutor exemplo de que o crime compensa.
É preciso, para saúde de nossa sociedade, que seja punido o regime genocida, todos os mandantes do metódico caos que causou o descontrole das contaminações no país! Aqui avançamos esta pauta punitivista com a ressalva importante de que somos plenamente contrários ao encarceramento em massa conexo à chamada guerra às drogas, que somos críticos do proibicionismo em relação a drogas tornadas ilícitas e cuja ilicitude fomenta a proliferação de cárceres e de pessoas encarceradas em números estratosféricos.
Porém, no caso de um presidente da república, de alguém que ocupa a maior posição hierárquica do poder executivo, o grau de responsabilidade se exacerba e a punição exemplar deveria prevalecer sobre a impunidade – esta, aliás, propaga um precedente perigoso ao servir quase como um convite para outras práticas produtoras da mortandade-em-massa. Bolsonaro impune significa que futuros genocidas em futuras pandemias possam se sentir mais à vontade para produzir futuras carnificinas. Bolsonaro teria, assim, feito escola em sua especialidade na vida – que, segundo o próprio, é matar (“pô!”).
A má notícia é que nosso eleitorado não apenas está cindido, “polarizado”: sintomas de adoecimento grave da capacidade de senso crítico e de juízo autônomo também espalham-se como um novo câncer, desta vez “ideológico”, uma espécie de vírus mental que faz proliferarem efeitos nefastos que impedem nosso processo de cura coletiva.
O apego patológico de uma fração absurdamente gigante do eleitorado à candidatura de Jair Bolsonaro conduz nossa sociedade ao perigo de adoecer ainda mais gravemente. Não há maneira delicada e cortês para se referir aos nossos concidadãos que passam pano no sangue que o presifake tem nas mãos – melhor seria chamá-los, com os neologismos do poeta José Paulo Paes, de “patriotários” e “suicidadãos”. Ainda que parte deste eleitorado esteja “fechadão” com Bolsonaro por estar mal-informado, alienado ou por ser manipulado por patrões ou pastores, o que supostamente serve como desculpa, é preciso não se furtar ao reconhecimento pleno de que temos sim um amplo eleitorado de viés fascista, e que não há maneira delicada e cheia de paz, amor e concórdia para lidarmos com militantes de uma seita fascista.
Se nossa democracia já respira por aparelhos em uma UTI superlotada, com a “re-consagração” de Bolsonaro – seja pelas urnas, seja por um novo golpe de estado – poderíamos considerar a democracia brasileira de fato morta. O Brasil viraria uma espécie de democracia-zumbi, para dialogar aqui com Mark Fisher, e nossa tarefa para o futuro envolveria uma luta de resistência que evoca a Resistance francesa diante do III Reich invadindo e ocupando Paris. Nosso país estaria de fato sob a ocupação de um regime fascista, fundamentalista, e além do mais uma espécie de zumbi do necrocapitalismo, laboratório global da nova Doutrina do Choque pós-Pinochet e pós-Katrina.
O golpe de 2016 teria sido consumado em 2022: do impeachment à ditadura, passando por uma pandemia, o projeto autoritário da direita ultra-capitalista e fundamentalista nas fés e “costumes” teria triunfado. Sabemos, no entanto, que neste país dos aquilombamentos, dos levantes populares, das insurreições decoloniais, da potência indomável das culturas na contra corrente do mainstream, nesta terra onde houve Canudos e Palmares, onde viveram Chicos Mendes e Marielles, onde nasceram Lulas e Betinhos, eles – os truculentos servidores da opressão violenta que sustenta o privilégio injusto de poucos – jamais triunfarão sem resistência.
Em seu livro Sem Máscara, publicado em 2022 pela Cia das Letras, Guilherme Amado honra a profissão de jornalista ao contar em minúcias como se deu a “aposta pelo caos” pelo Governo Bolsonaro. Da obra, queria destacar a imagem do esgoto, aludida no título deste artigo, que remete a uma fala do presifake de negligência e menoscabamento da pandemia. Era o início do surto, no primeiro semestre de 2020, e o sujeito vinha a público dizer que ningúem se preocupasse nem fizesse histeria com a “gripezinha”. Em uma ocasião, disse que “o brasileiro tem que ser estudado, ele não pega nada: você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha… e não acontece nada com ele… eu acho até que muita gente já foi infectada há semanas ou mses, e ele já tem anticorpos que ajuda a não proliferar isso daí.” (AMADO: 2022, pg. 60)
É tarefa difícil selecionar a mais atroz dentre as atrocidades que Bolsonaro profere diariamente, feito uma metralhadora giratória de horrores verbais, para continuar sempre em evidência, causando polêmicas e assim gerando engajamento. Não sei eleger a frase mais atroz, a ideia mais vil, o desvio ético mais perverso, na ampla gama de delitos, crimes e impropérios que jorram de sua mente dotada de doses equivalentes de estupidez e de incontinência – mas tenho uma náusea singular, extraordinária, por este Discurso do Esgoto, saindo da boca de quem saiu.
Primeiro, manifesta desrespeito profundo pela saúde dos brasileiros, descaso com o saneamento básico, “naturalizando” que o Estado se ausente e se demita do exercício de funções que trariam saúde e bem-estar físico e psíquico às comunidades: Bolsonaro acha que “tudo bem” os brasileiros viverem em meio a esgoto a céu aberto, em meio a rios poluídos como o Tietê ou “em coma” como o Rio Doce após a tragédia da ruptura da barragem da Vale; o brasileiro teria uma notável imunidade, “não pega nada”, pode nadar no lodo mais tóxico que sairá com boa saúde e pronto para torcer diante do jogo de futebol.
O discurso desinformativo do delinquente conduz os sujeitos que o decodificam sem crítica e que aderem a ele a uma crença falsa em sua própria invulnerabilidade. Trocando em miúdos, o cidadão que acreditou em Bolsonaro adotou a crença em sua imunidade – “sou invulnerável! esta gripezinha nunca vai me derrubar!” – e expôs-se ao vírus, e à consequente contaminação desenfreada das pessoas próximas que ocorre com aqueles indivíduos irresponsáveis que não usam máscaras nem praticam as medidas de distanciamento. O esgoto tóxico a céu aberto que foi o próprio governo Bolsonaro deveria nos ter imunizado contra o pandemônio gerado pelo bolsonarismo – agente do caos, da desordem, da desinformação, da morte e da fome e do desemprego e da discórdia no país.
O que é mais nauseante e angustiante de perceber, nos dias que correm moendo nossos ânimos e fazendo-nos habitar o labirinto da ansiedade perpétua, é perceber a cegueira de mais de 50 milhões: eles estiveram imersos no esgoto tóxico de Bolsonaro e estão pedindo mais, uma psicopatologia social que serve de Esfinge – ou a deciframos, ou ela nos devora. Sem uma compreensão do sado-masoquismo e da psicose não vamos entender nada do bolsonarismo, eu suspeito. Tampouco saberemos combatê-lo eficazmente se não sondarmos criticamente a fé, a credulidade, a disposição para a crença, que faz com que estejam afetivamente vinculados o “messias”/o Mito e seu séquito de seguidores/Minions.
É preciso corroer a fé que está sendo depositada neste lobo em pele de cordeiro, neste “presidente adoecido e sem amor”, para homenagear aqui a diva da nova música brasileira Flaira Ferro. É preciso fazer com que as pessoas que Bolsonaro jogou no esgoto saibam que estão no esgoto e façam o devido juízo de condenação daquele que as jogou ali.
Esquecer a covid é um erro – mais que isto, há um imperativo ético que nos faz humanos e ele nos ordena que honremos nossos mortos. Um dia cada um de nós será um morto, e nenhum de nós lida sem angústia com o fato de que será esquecido, tido apenas como página virada. Nosso dever ético implica não só os vivos – inclui também os mortos. E há tantos mortos que poderiam estar vivos se não fosse pelos crimes do desgoverno Bolsonaro! Há tantas vidas que estariam vivas caso este genocida e seus cúmplices tivessem sabido ouvir a voz do iluminismo, a voz da ciência, a voz da filosofia, a voz da sensatez…. Mas não – a aposta foi no caos e a colheita foi de carnificina:
“Desde o começo da pandemia, munido de todas as informações disponíveis sobre a seriedade do momento, Bolsonaro fizera apostas contra todas as recomendações da ciência para enfrentar o vírus. Isolamento social, máscaras, vacina, todos os instrumentos contra a covid19 haviam sido em algum momento sabotados, um a um. Como se os milhares de mortes não bastassem, o presidente também engendrara uma permanente crise institucional, com atitudes e palavras que tinham como único objetivo incendiar o país. O cenário de caos lhe parecia não só aprazível, mas também necessário para o sucesso de seu projeto de poder.” GUILHERME AMADO – Sem Máscara. 2022 – Pg. 11.
Publicado em: 21/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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